Matrix e o Deserto do Real.

César Rangel
7 min readJan 9, 2021

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“Apanhei-te, Arquiteto (ego). Nunca mais tornarás a construir” (Buda)

Prólogo:

“Todos os seres humanos, por natureza, desejam saber.” (Aristóteles)

U ma das cenas que mais me agrada em Matrix é a cena do início do filme 1 num clube escuro. Notam-se ao redor roupas de couro, movimento lascivos, há no ar uma sugestão de perversão sexual, sadismo e masoquismo, drogas ilícitas e a atmosfera do submundo underground. A música (um tesão ouça aqui enquanto lê) é tecno-industrial e podemos avistar Trinity aproximando-se de Neo, ambos se encaram e se penetram como felinos na noite. Ela se aproxima, a atração animal é óbvia, mas longe do costumeiro enlace de corpos, Trinity sussurra no ouvido de Neo:

“É a pergunta que nos impele, Neo. Foi a pergunta que trouxe você aqui. Você sabe a pergunta, assim como eu sei. A resposta está lá fora, Neo”.

A pílula azul te faz retornar à sua realidade confortável, porém ilusória; já a pílula vermelha te fará acordar para o deserto do real.
  1. A Metafísica de Matrix.

A pergunta é: “O que é a Matriz?”, e a busca pela resposta acaba tirando Neo da prisão e levando-o ao mundo Real. A saída de Neo da Matriz não é diferente da subida do prisioneiro da caverna, na alegoria de Platão; mas ao invés de se deparar com um mundo de formas belas, Neo descobre um mundo destroçado por guerra entre humanos e máquinas e a vida coexiste com a ameaça constante de morte.

Entretanto, Neo ainda preferirá essa realidade, chamada por Morpheus “como um deserto lúgubre” à ilusão da Matriz, porque é a verdade. Sua escolha é tão engajada que Matrix termina com a resolução de Neo de destruir o mundo de ilusão e transmitir aos outros a verdade de sua existência.

Como o prisioneiro liberto de Platão, Neo retorna ao mundo falso para libertar os outros de sua prisão.

As perguntas levantadas por Matrix tomam a forma da questão metafísica paradigmática por excelência: “O que é…?” “O que é a realidade?”, “O que é uma pessoa?”, “O que é a relação entre a mente e o corpo?” “O que é a ligação entre a vontade livre e o destino?”, “O que é a aparência e o que é a realidade?” “O que separa as duas?” “Que propriedades ou características são encontradas em uma e não na outra?” Enfim são muitas as questões abordadas.

O mundo de Matrix parece ser falsamente simples, mas, na verdade, é muito complexo e em muitos aspectos lembra o nosso mundo. Entretanto, duas categorias principais são levantadas na referida obra, e têm sido usadas em filosofia desde os pré-socráticos até hoje, são geralmente chamadas de (aparência) e (realidade), mas em Matrix são abordadas por meio dos adjetivos “real” e “virtual” acopladas à expressão “Mundo real” e “Mundo virtual” — o característico ambiente cibernético e toda sua Cibercultura.

Obviamente para distinguir entre real e irreal, são usadas propriedades e características pertencentes às coisas que são classificadas assim. Então outra pergunta nos cerca: o que é tão comum a todas as coisas reais e comum a todas as coisas irreais, que as faz serem como são e, ao mesmo tempo, as torna tão diferentes umas das outras?

Em outras palavras, por que as mentes, máquinas, corpos humanos, programas de computador, sinais elétricos são ditos como reais, enquanto que as simulações, imagens, entidades digitais, sonhos, aparência, projeções mentais e a Matriz não são?

Tudo o que recebi, até presentemente, como o mais verdadeiro e seguro, aprendi-o dos sentidos ou pelos sentidos: ora, experimentei algumas vezes que esses sentidos eram enganosos, e é de prudência nunca se fiar inteiramente em quem já nos enganou uma vez. (Descartes, Primeira Meditação metafísica: Das coisas que se podem colocar em dúvida)

Há pelo menos dois modos de se distinguir metafisicamente entre estas categorias de real e irreal. O primeiro tem a ver com a fonte do real e irreal respectivamente, e o segundo com o status ontológico de ambos.

Para o primeiro conhecemos a fonte, ou as causas, de muitas coisas no mundo real, de tal modo que sabemos que máquinas e sinais elétricos são produzidos ora por humanos ou máquinas artificialmente inteligentes.

Em contrapartida, sabemos igualmente a fonte de todas as coisas no mundo da Matriz, isto é, ela é um programa de computador muito complexo a falsear a realidade nas mentes dos corpos humanos em cultivo.

O segundo modo de distinguir entre as categorias de real e irreal tem a ver com seu respectivo status ontológico, ou seja, o modo como as coisas existem.

Deste modo podemos perceber que o mundo real em Matrix não depende de outra coisa para existir, ele se auto-sustenta. Como Descartes previa, entretanto, não há um demônio maldoso a nos enganar, um gênio do mal ou do bem a nos fantasiar a realidade.

Não obstante, mesmo que houvesse tal ser genial ou maldoso a nos ludibriar e cuja realidade dependesse de sua vontade, o mundo irreal é ainda mais fraco em termos ontológicos, pois este carrega uma dependência ainda maior, pois se coloca inteiramente em dependência de coisas do mundo real para existir. O mundo virtual existe enquanto as máquinas artificialmente inteligentes continuarem operando o programa e gerando sinais elétricos que afetam os cérebros humanos na “horta”.

O mundo real é metafisicamente distinto do mundo irreal porque contém coisas cuja fonte e status ontológico são diferentes das coisas contidas no segundo.

Assim posto, para os personagens do filme ou de nossa realidade saberem a diferença entre eles requer a liderança de um prenunciador que lhes mostre a diferença, assim como na alegoria de Platão com o primeiro prisioneiro a sair e voltar à caverna.

Foi somente graças ao primeiro homem a sair da Matriz e da Caverna pelo que elas eram (irreais) que os outros prisioneiros puderam escapar da Matriz. Embora o filme não nos diga quem foi este primeiro humano a adquirir a consciência de sua ilusão ou como o fez para “acordar”, assim como não sabemos como fugiu o primeiro prisioneiro na alegoria da caverna de Platão; Neo, Trinity e os outros souberam seguir as pistas indicando que existia algo errado com o mundo deles e assim poder cair na toca do coelho e vislumbrar a realidade por detrás da cortina prateada do Véu de Maia.

Morpheus indica isso a seus companheiros antes de Neo resolver tomar a pílula vermelha: “O que você sabe, você não pode explicar, mas sente. Você sentiu isso a vida toda… Que há algo errado com o mundo. Não sabe o que é, mas existe, como um espeto na mente, deixando-o louco”.

A questão de como reconhecemos a distinção entre os dois mundos tem a ver com a natureza do conhecimento. É, portanto, uma questão de epistemologia e não de metafísica.

Schopenhauer em sua obra “O Mundo como vontade e representação” dirá nas linhas iniciais que: “O mundo é minha representação.” Esta é uma verdade que vale em relação a cada ser que vive e conhece, embora apenas o homem possa trazê-la à consciência refletida e abstrata. E de fato o faz. Então nele aparece a clarividência filosófica. Torna-se-lhe claro e certo que não conhece sol algum e terra alguma, mas sempre apenas um olho que vê um sol, uma mão que toca uma terra. Que o mundo a cercá-lo existe apenas como representação, isto é, tão-somente em relação a outrem, aquele que representa, ou seja, ele mesmo. — Se alguma verdade pode ser expressa a priori, é essa, pois é uma asserção da forma de toda experiência possível e imaginável, mais universal que qualquer outra, que tempo, espaço e causalidade, pois todas essas já a pressupõem; e, se cada uma dessas formas, conhecidas por todos nós como figuras particulares do princípio de razão, somente valem para uma classe específica de representações, a divisão em sujeito e objeto, ao contrário, é a forma comum de todas as classes, unicamente sob a qual é em geral possível pensar qualquer tipo de representação, abstrata ou intuitiva, pura ou empírica. Verdade alguma é, portanto, mais certa, mais independente de todas as outras e menos necessária de uma prova do que esta: o que existe para o conhecimento, portanto o mundo inteiro, é tão-somente objeto em relação ao sujeito, intuição de quem intui, numa palavra, representação. Naturalmente isso vale tanto para o presente quanto para o passado e o futuro, tanto para o próximo quanto para o distante, pois é aplicável até mesmo ao tempo, bem como ao espaço, unicamente nos quais tudo se diferencia. Tudo o que pertence e pode pertencer ao mundo está inevitavelmente investido desse estar-condicionado pelo sujeito, existindo apenas para este. O mundo é representação. (Schopenhauer, O Mundo como vontade e representação, 2005).

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Obg. Att. César Rangel

Referência bibliográfica:

DESCARTES, René. Discurso do método; Meditações; Objeções e respostas; As paixões da alma; Cartas. 2.ed. São Paulo: Abril Cultural, 1979.

SCHOPENHAUER, Arthur. O Mundo como vontade e representação, tradução de Jair Barboza. — São Paulo: Editora UNESP, 2005

IRWIN, W. The Matrix and Philosophy: Welcome to the Desert of the Real. Carus Publishing Company. Ed: Madras, 2003.

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César Rangel

Graduado em Letras (Unesp) e graduando em Filosofia (UFSCar), pesquisador e poeta. Além de ser um caminhante e perscrutador do V.I.T.R.I.O.L