Problema XXX, I “Melancolia”—de Aristóteles

César Rangel
13 min readMay 5, 2021

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O diagnóstico ou uso excepcional da Melancolia.

Preâmbulo:

Desde a Antiguidade grega o problema da perturbação da alma ou daMelancolia” nos corpos é discutida e investigada a ponto de ser misturada aos diagnósticos hipocráticos um outro acometimento da melancolia, este contido na excepcionalidade da engenhosidade intelectual humana.

Foi na filosofia peripatética, entretanto, que o entrelaçamento das teorias médicas dos humores hipocráticos se introduziram às especulações filosóficas do caráter de homens extraordinários vinculados à melancolia.

Isto é, tal tesouro de proposição que muitos vieram a se debruçar recai sobre o famoso Problema XXX, I e sua proposição que ressoará através dos séculos: “Por que todo ser de exceção é melancólico?…” A questão não tem por objeto um fato; ou ser uma evidência, na qual (todo ser de exceção é melancólico). O autor dará exemplos e encarará diretamente as causas e suas objeções.

Este paradigma aristotélico repercutirá pelos séculos até a medicina imperial, isto é, inicia-se pelo Corpus Hippocraticum no período entre os séculos V e IV a.C. e se estende até o período greco-romano, com Galeno, em II d.C. tendo se dispersado com o passar dos tempos e encontrado outras abordagens no período medievo e renascentista posterior, e mesmo assim, persistindo tal problema nos dias atuais.

A saúde para os primeiros médicos era um estado habitual que buscava o equilíbrio (mente e corpo), uma diathesis da physis, cuja estrutura é constituída pela boa ordem ou o perfeito equilíbrio da mistura (krasis) das dynameis dos humores. O equilíbrio, portanto, encontrado pela homeostase se situa na isonomia entre os humores. A doença, por outro lado, é uma desproporção dos humores (dyscrasia), quando há escassez ou excesso de pelo menos um destes ou quando um deles não se mistura com os demais.

Mas afinal o que isso tem a ver com o Problema XXX, I de Aristóteles (ou, segundo alguns: Pseudo-Aristóteles)? É a conhecida pergunta:

“por que afinal todos os que foram homens de exceção, figuras excepcionais, seja em filosofia, artes, poesia ou política, foram também manifestamente melancólicos?”

No qual Aristóteles aponta vários exemplos: Heráclito, Lisandro, Ajax, Belerofonte, Empédocles, Platão e Sócrates “e muitos outros entre as pessoas ilustres” até a se auto listar declaradamente acometido pela melancolia, cuja a biles negra os acometeu tocando ou o pensamento ou o corpo, dependendo de sua passagem: [Doença ou excepcionalidade? eis a questão…]

Enfim, buscaremos traçar sucintamente como eram tratadas as questões sobre a melancolia entre o elemento orgânico e o mental naquele tempo e sua posterior discussão passando pela medicina medieval, os dualismos (mente e corpo) materialista, os anos renascentistas com suas várias formulações, finalmente com a baixa e alta idade moderna e seu capitalismo progressivo, até os dias de hoje com a contemporaneidade de uma Sociedade da Transparência, do Cansaço e da Positividade a nos atropelar ultrapassando a velha “melancolia” para uma nova “depressão” hodierna.

  1. A Melancolia pela visão hipocrática.

A antiga concepção mágico-religiosa das doenças sofreu drástica mudança com o passar dos séculos, da Grécia do século V a.C. até o mundo grego-romano de Galeno. Tal concepção de saúde encontrava suporte na religião panteísta, isto é, apoiada pela divindade da medicina, Asclépio, associado a Apolo; além do culto a outros deuses como Hígia, a Saúde e Panaceia, a Cura.

Assim a religião que primeiro ostentou os caminhos da medicina, aos poucos se constituiu como um divisor entre a nova concepção médica e a religião propriamente dita, cuja nova ideia sugeriria uma maior razoabilidade e prudência no trato médico, passando a sugestionar que a saúde não mais deveria resultar das crenças e rituais, mas sim de procedimentos racionalizados.

Portanto, entre a antiga postura centrada na Panaceia, que sendo a Cura representava a ideia de que todas as doenças podiam ser curadas, não obstante, com o passar dos tempos, para os gregos a concepção de cura foi mudando, era agora obtida pelo uso de plantas, técnicas e de métodos naturais, e não apenas por procedimentos ritualísticos.

A teoria humoral ou (teoria dos temperamentos) e seus respectivos humores sangue, sanguíneo; bile amarela, colérico; fleuma, fleumático; e bile negra, melancólico -, de Hipócrates de Cós (460–370 a.C.), prevaleceu até o século XIX, sendo poucas vezes contestada.

Uma rara exceção foi Erasístratos de Chios (304–250 a.C.), um suposto neto de Aristóteles (384–322 a.C.), que propôs a teoria dos três fluidos para explicar a circulação. Mas Galeno de Pérgamo (130–200 a.C.), com o prestígio de médico obtido na corte de Marco Aurélio (121–180 a.C.), embora aceitasse a teoria dos fluidos, deu novo fôlego aquelas crendices hipocráticas por longos séculos seguida.

O próprio Aristóteles chegou a lançar a tese de que todo homem de gênio teria o caráter melancólico. Desde então, o mito em torno da genialidade e loucura misturou-se às questões médicas, morais e teológicas, até receber um tratamento científico neuronal contemporâneo mas ai é um avanço para outra matéria.

A Medicina e a Filosofia antigas têm a sua respectiva autonomia sedimentada em ligamentos semânticos fortes, centrados nos conceitos gerais de equilíbrio e integridade, conceitos que assumem em cada um dos domínios uma operatividade própria mas aberta a influências, cruzamentos e derivações… mais ou menos pertinentes e precisos entre o diagnóstico médico da doença e o exame de crenças e raciocínio facilitado ou promovido pelo filósofo. (CARVALHO, 2015).

A melancolia segundo estudos antigos, mesmo nas suas formas mais graves, é indissociável do caráter do indivíduo, concentrando-se as suas manifestações no ânimo e na vitalidade psicofísica. Ela foi frequentemente tomada como condição normal que só em certos casos de grau elevado deve ser objeto de atenção médica. Contudo o melancólico aparece como sujeito a movimentos emocionais intensos que decorrem de uma conduta ética particular ou simplesmente de uma atribuição divina por um lado e por outro o melancólico é aquele acometido pelos vapores em excesso da bílis negra e suas deturpações corporais e mentais.

Foi na passagem para o século IV a.C. que, além do sangue, do flegma e da bílis (amarela) se adicionou um quarto humor cuja existência foi deduzida da coloração de excreções e do sangue mais negro, este humor é literalmente a “bílis negra” — fluído a partir do qual se deduz a referência à (melancolia) em textos como é o caso em Da Natureza do Homem e no Problema XXX, I encontrar-se-á tal referência à bílis negra.

2. Da melancolia patológica à melancolia excepcional criativa.

Hipócrates e seus seguidores acreditavam que dos temperamentos, o melancólico era o mais patológico, isto é, aquele mais associado à doença, contudo Hipócrates diferenciava a melancolia endógena, em que, “sem razão aparente, a pessoa torna-se taciturna e busca a solidão”, da melancolia exógena, resultante de um trauma externo. A melancolia segundo o filósofo-médico é a perda do amor pela vida, uma situação na qual a pessoa aspira à morte como se fosse uma bênção.

Mas nesta altura nós nos perguntamos, a melancolia é só isso, uma doença?

Platão irá distinguir duas formas de loucura: uma resultante de doença, outra de influências divinas, isto é, a primeira por vias somáticas e a segunda espirituais ou mentais dando origem à famosa questão de Aristóteles, o Problema XXX, I.

A partir desta distinção feita por Platão e desta problemática levantada por Aristóteles notamos uma importante diferenciação implícita: seres humanos normais podem adoecer de melancolia, mas há uma melancolia natural que torna o seu portador alguém genial, isto é, “normalmente anormal”.

O gênio, portanto, surgiria pela ação descontrolada da própria bile negra, que, como o vinho, teria a poderosa ação sobre a mente e consequentemente, sobre o temperamento melancólico, que no gênio, no filósofo, no artista, nos músicos, nos pintores e nos intelectuais em geral tomariam o tonos de temperamento metafórico de uma “ruminação do passado”, um “sentir-se preso num vazio atemporal”, enfim, propenso à todo tipo de criação — na filosofia, na poesia, nas artes em geral denotando grande excepcionalidade em função do estado melancólico.

A bile negra e o vinho são “modeladores de caráter”, i.é, a bile negra oferece à natureza melancólica todos os estados da embriague com todas as suas delícias e perigos, por toda a vida.

Entretanto, como diziam os antigos, os melancólicos pagam alto preço por tamanha excepcionalidade acometida: esse talento incomum e notável os arrebata e os conduz pela vida como um movente sem rumo e atormentado pelos seus próprios pensamentos nebulosos.

Segundo as pesquisas do professor, médico e historiador Jackie Pigeaud em seu livro Aristóteles — O Homem de Gênio e a Melancolia (1998), “a bile negra é uma mistura perfeitamente instável”, isto é, “ela pode ser extremamente fria ou quente a cada momento” o que sobrelevaria sua reação entre patologia e excepcionalidade.

Ainda segundo o pesquisador “o problema é saber se existe uma norma nessa substância composta e instável… pois se trata de estabelecer que o melancólico não é necessariamente um doente, e que existe, uma saúde do melancólico” ou seja, que entre o homalon (a constância) e o anômalon, (a inconstância) existe uma constância da inconstância!

É que cada doente da bile negra, segundo então nosso entendimento, não é forçosamente melancólico; do mesmo modo que cada melancólico não é necessariamente doente da bile negra, assim como tais ímpetos excepcionais de criatividade e excelência não são impreterivelmente atribuídos aos filósofos, artistas, músicos, pintores, gênios e afins, tanto quanto as pessoas comuns e vice versa às doenças da Bile Negra.

Entrementes, Hipócrates ao tratar do tema da melancolia (doença ou excepcionalidade) irá focá-lo sobretudo na espécie da ekstasis (loucura), de uma “modalidade da loucura e de uma forma de ser louco”, ao passo que Galeno quer dar ao vocabulário hipocrático da loucura um valor muito mais preciso, fala de ekstasis como do acúmulo da perturbação do pensamento, isto é, que sob efeito da bile negra aquecida, esta procuraria um meio por onde sair, e sob forma de extravio do pensamento, o faz simultâneo à saída do indivíduo dele mesmo, ou seja, adentrando nas escadarias da loucura.

Assim Galeno conclui que:

Esta loucura pode ser o resultado do surgimento fortuito da bile negra, doença resultante de um estado temporariamente melancólico; ou ainda doença que espreita um temperamento melancólico. É necessário, portanto, que o melancólico se vigie e se cuide.

Aristóteles em sua obra Ética a Nicômaco igualmente entenderá que o melancólico “têm necessidade da medicina”, “porque seu corpo está constantemente corroído por causa da mistura, e se encontra sem cessar em estado de desejo violento. Mas o prazer o afasta a pena, o prazer que é o seu oposto, como qualquer prazer, se é intenso, e é por isso que os melancólicos são intemperantes e viciosos”.

Portanto, o melancólico é sempre empurrado para a busca do prazer que o acalmaria na dor, nascida da corrosão da bile negra, ele é sem cessar impelido aos prazeres e à distração na urgência de encontrar a paz do corpo e da alma, arriscando-se a cair no vício dos extremismos.

3. O núcleo do Problema XXX, I — o que une os domínios da cultura, da filosofia, das artes, da poesia etc à melancolia?

Ao passarmos pelas abordagens médicas e filosóficas a respeito da melancolia enquanto patologia ou excepcionalidade, encontramos agora o cerne do Problema XXX, I — na pergunta capital sobre o que faz a ligação entre todos os domínios da cultura, da arte, da filosofia, da atividade do cidadão e da poesia contida no problema? Ou seja, o que faz a ligação entre estes domínios e a constância na inconstância do melancólico?

Segundo Jackie Pigeaud (1998) brilhantemente refletindo e se debruçando sobre estas questões afirma que “só é possível entender (as questões) no interior de um pensamento da mímesis, da representação”.

O termo (mímesis) surgiu com Platão que tentou definir o vocábulo em seus diálogos arguindo que a mímesis enquanto representação artística do mundo físico seria uma imitação de segunda mão; mas foi com Aristóteles que em sua “A Arte Poética” irá tratar como temática principal de sua obra, atribuindo à mimese dois significados: o da imitação e o da e emulação.

Para os antigos a acepção mímesis regia a classe da “Criação”, encarando-a como a representação do universo perceptível, contudo Platão divergia ao pensar que toda a criação era vista como uma imitação, pois até a criação do mundo era como uma imitação da natureza verdadeira (o mundo das ideias), sendo assim — “Criar é imitar” dizia Platão.

Já Aristóteles que via no drama a “imitação de uma ação” em primeira mão asseverava que na tragédia a mímesis teria o efeito catártico nas pessoas, sobrelevando sua teoria da expurgação ou (purificação) pelo discurso imitativo da ação e seu reconhecimento catártico.

A isto se concebe que o melancólico artista, o pensador ou o imitador não fabrica uma realidade, senão ilusões desta — “ele não tem consciência nem controle do que faz. Não é um verdadeiro técnico” (Pigeaud, 1998).

O Problema XXX, I é um devaneio sobre a criação, ou antes, como diríamos agora, a criatividade, a capacidade de criar.

Na Poética de Aristóteles fala que a arte poética pertence ao seres bem-dotado pela natureza ou ao louco, porque os primeiros se modelam facilmente e os outros saem de si mesmos.

Dito de outra maneira a mímesis pela qual se busca tornar-se o outro encontra aqui uma dupla perspectiva de acesso, e portanto, àquela pergunta que buscava delinear o elo entre os domínios polimorfos e à melancolia encontra aqui sua resposta:

Pode-se ser dotado pela natureza para se modelar a si mesmo e se fazer diferente; ou bem a loucura, ou seja, a saída de si mesmo, torna-o apto àquilo que é justamente a alienação, o fato de tornar-se outro. O ser dotado pode facilmente imitar; o ser louco se projeta fora de si mesmo e pode então tomar todas as posições dos outros, o que é uma outra maneira de imitar. (Pigeaud, 1998)

Assim como exposto no Problema XXX, I — para aqueles que têm a mistura da biles negra descontrolada, muito quente ou muito fria, abundante e vaporosa são eventualmente levados à loucura e entre a ruína e a excepcionalidade, o dotado ou o louco são levados ao amor e pelos impulsos ou desejos, flamas ou emudeceres Criam os muitos mundos possíveis em suas emulações e o que os difere então, nada mais é do que a diferença de grau.

O Problema XXX, I demarcou e dialogou o problema da relação entre a fisiologia e os comportamentos, ou seja, entre as acepções do acometimento criativo melancólico até sua patologia desvairada; pelos caminhos da relação mente e corpo, arqueando para lá e para cá o contraste presente entre a bile negra corporal inconstante e a embriaguez constantemente inflamada nas grandes mentes criadoras — a loucura sempre presente graduando o que a sociedade relega ora como abominável “O Louco” e maravilhoso “O Gênio” ou Artista, Filósofo, Cidadão letrado etc.

Em suma, após superficial encontro com O Melancólico retratado pelo Problema XXX, I — acredito que tenhamos visto que a melancolia não é necessariamente uma doença; que ela transcende a criatividade não se limitando apenas à teoria da criação mimética, mas também que o melancólico é certamente uma pessoa frágil em certos aspectos, indestrutível em outros, mas é esta instabilidade e esta mistura da bílis com a criação que dá a possibilidade deste cidadão bem-dotado de se exprimir através de múltiplos comportamentos deixando entre aberto se a criação e a loucura não seriam antes de tudo dois estados necessariamente ligados!?

Contudo receamos que não, pois ainda que encontremos excepcionalidades e exceções, toda a fortuna crítica entorno do Problema XXX, I está ai para comprovar que nem sempre a criação e a loucura andam juntas, mas se a criação de algum modo se prende à mobilidade do melancólico, é de se supor que a loucura não é a condição necessária, e assim por dentro todos os artistas, filósofos, pensadores, criadores de todas as maneiras e amantes dos vinhos terão ao seu lado ou ao fundo a sombra melancólica dos tempos passados, revigorando-se nos tempos atuais e vislumbrando o abrir das cortinas para o cinza de amanha.

Esta matéria não pretende de forma alguma esgotar o assunto, pelo contrário, este assunto irá novamente aparecer e ser discutido por outras vertentes e perspectivas. Até a próxima.

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Obg. Att. César Rangel

O tempo é relativo, a profundidade não se mede com o tempo, mas com a interação, a criação e a socialização de cada um.

Referência bibliográfica:

ARISTÓTELES. De Anima. Trad. Maria Cecília Gomes dos Reis. São Paulo: Ed 34, 2006.
______. Ética a Nicômaco; Poética. São Paulo. 4ed: Nova Cultura, 1991.
______. O Homem de gênio e a melancolia: o problema XX, I. Tradução do grego Jackie Pigeaud. Rio de Janeiro. Ed: Lacerda, 1998.

JACKSON, W, S. História de la melancolía y la depresíon: desde los tiempos hipocráticos a la época moderna. traduzido por Consuelo Vázquez de Parga. Ed: TURNER, S. A. 1986.

SCLIAR, Moacyr. Saturno nos trópicos: a melancolia europeia chega ao Brasil. São Paulo. Ed: Companhia das letras, 2003.

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César Rangel

Graduado em Letras (Unesp) e graduando em Filosofia (UFSCar), pesquisador e poeta. Além de ser um caminhante e perscrutador do V.I.T.R.I.O.L