Protágoras de Abdera 490 a.C. -parte 1

César Rangel
7 min readSep 2, 2021

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E a Escola Sofística — do Homem medida de todas as coisas…

Prólogo:

O pensador Protágoras, nascido em Abdera, provavelmente viveu entre os anos de 490 e 421 a.C., tendo sido conclamado o primeiro dentre a Escola sofística pelos historiadores do pensamento ocidental. Isto é, o termo sofista, nas suas primeiras aparições no mundo grego antigo, significava “sábio”, ora confundido com os poetas. Mas ao longo do tempo passou a significar escritor em prosa e, por fim, mestre e professor.

Entretanto, foi com Aristófenes em sua Comédia As Nuvens (423 a.C.) dirigida aos sofistas, que a profissão sofística recebe características pejorativas, como o adjetivo “charlatão”, uma vez que para o Dramaturgo, este profissional sofista, ao cobrar por aquilo que não era capaz de ensinar, tornava-o “charlatão” do que dizia.

Não obstante, fora mesmo com Platão, ou melhor, graças a uma dada interpretação platônica, que este pensador sofista recebeu atributos que iam se fixar na história por um longo período, a saber, segundo VAZ PINTO (2005, p. 17 e 18) sobre isso, diz que:

“o fato de os sofistas não serem ‘filósofos’ aos olhos de Platão e de Aristóteles irá ter efeitos negativos na prática doxográfica subsequente que destes profundamente depende. O menosprezo em que eram tidos no plano teorético torna-se um desincentivo para o registro e a repetição das respectivas doutrinas…”

Por fim aos estudiosos do movimento sofista se encontra uma grande dificuldade, o fato de não restarem escritos de nenhum dos sofistas, necessitando portanto, de dependerem de fragmentos insignificantes em certa medida e muitas vezes obscuros, ou discutíveis, de sua doutrina, a exemplo de Protágoras que aparece somente nos diálogos platônicos e, consubstancialmente, a este nos restou apenas uma frase:

“O Homem é a medida de todas as coisas, das coisas que são, enquanto são, (e) das coisas que não são, enquanto não são.”

Portanto, indo diretamente ao ponto, para Protágoras, se há saber, é aquele que brota do foro íntimo de cada um e se apoia no senso comum, isto é, na soma dos interesses de uma categoria de pessoas ou de uma coletividade, neste sentido, por conseguinte, “o homem é de todas as coisas a medida”. (Teeteto 152a)

  1. Protágoras e o início do pensamento crítico.

Antes de Protágoras, o mundo grego era habitado exclusivamente pelo pensamento ontológico dos pré-socráticos, isto é, preocupavam-se com a Physis e o movimento íntimo da natureza, assim como a busca pelo princípio do ser, ou seja, a organização do Cósmos e do pensamento do Mundo.

Protágoras como diz a historiografia “nasce junto com a democracia”, isso é dito, pois o sofista, durante o período de governo de Péricles em 469 a.C — fora seu conselheiro, tendo participado, portanto, da consolidação e aperfeiçoamento da democracia ateniense, alcançando seu maior grau de estabilidade política, trazendo grande crescimento para a Pólis ateniense nos mais diversos campos da sociedade.

Os demais sofistas desta escola trataram do pensamento racional na transição entre o mito e o logos (aqui tratado como ‘razão’), mas ainda sim denominados, geralmente, como não filósofos, segundo a definição platônica. Isto é, os demais sofistas foram tratados como mercenários ou enganadores, produtores de discursos enganadores, dos quais Protágoras se diferirá criticamente como se verá adiante.

Estes sofistas mercenários, como se sabe, praticavam a venda de técnicas para produção de discursos enganosos, o que era comum nesta época da democracia ateniense. Ao passo que em Protágoras ou mesmo em Górgias, havia uma ética a respeito de suas produções de discurso. Posto isso, tratando assim, pelo termo sofista, há um duplo aspecto, mais ligado à época de cada sofista, do que à sua prática difamada que persiste até os dias atuais.

Podendo assim chamar Protágoras de filósofo e os sofistas mercenários, não.

Em suma, com Parmênides (filósofo pré-socrático) temos o início da vertente Lógica do logos, mas com Protágoras (filósofo sofista) temos o início da vertente Crítica do logos.

2. O Poema de Parmênides e suas distintas interpretações, pelos filósofos e sofistas.

Como já foi dito, o pensamento de Protágoras surgi juntamente com o aperfeiçoamento da democracia ateniense no séc. V a.C, dando início ao pensamento crítico, ditoantropológico, contrapondo-se ao pensamento ontológico de Parmênides, o qual pelo seu célebre Poema em diálogo com a Deusa, inicia a investigação sobre o caminho da verdade com a afirmação, feita pela deusa, de que só há dois caminhos de investigação que se pode conceber: o caminho do (é) e o caminho do (não é).

A enunciação de cada caminho é acompanhada de uma proposição modal: (é), e não é possível que não seja; e (não é), e é necessário que não seja.

Assim posto se observa que a proposição modal do primeiro caminho exclui o enunciado inicial do segundo, igualmente com a proposição modal do segundo caminho que, por sua vez, exclui o enunciado inicial do primeiro. Portanto, os dois caminhos são incompatíveis: pois, um torna o outro impossível.

Se adotarmos o primeiro caminho do ser, (é), devemos rejeitar o segundo, pois este nos diz que é necessário não ser. Inversamente, se tomarmos o segundo caminho do, (não é), devemos abandonar o primeiro, pois este nos diz que não é possível não ser.

Em suma, ambos os caminhos se revelam exaustivos e mutuamente excludentes, não podendo recusar os dois nem pensar em um terceiro caminho. Deve-se, portanto, escolher um e rejeitar o outro. Isto é, do ponto de vista lógico, as duas proposições não podem ser verdadeiras ao mesmo tempo, mas tampouco podem ser falsas ao mesmo tempo, pois recusar as duas implica em recusar o próprio pensamento racional.

Sem adentrarmos ainda mais no poema de Parmênides, não passando da principal fala da deusa, a historiografia diz que tanto Protágoras, quanto os demais sofistas e, também Platão e os demais filósofos, interpretaram o poema de diferentes maneiras, cada qual levando-o para um campo interpretativo.

Foi o que Protágoras fez ao ponderar de todo o poema a síntese de que “Conhecer é perceber”, ou seja, praticamente funda uma terceira via para o poema: “O homem é a medida de todas as coisas”, ao constatar que (conhecimento) é (percepção), pelo raciocínio de que o ser do mundo (a coisa em si) é incognoscível, assim como o não-ser do mundo, igualmente não existente metafisicamente falando.

Portanto, Protágoras conclui que na medida em que não se é possível chegar no ser do mundo e dizer algo sobre ele, tampouco se poderia dizer algo daquilo que não é (não existe); assim restaria dizer do ser (a coisa em si) apenas aquilo que podemos perceber sobre ele.

Não dá para se fazer uma ciência do ser (episteme) para Protágoras, pois dele (o ser) não temos acesso total, mas sim somente fazer uma ciência das percepções — portanto, do que resta para nós saber da coisa em si — , ou seja, o parecer ser; pois o ser está fora da cognoscibilidade total, restando-nos apenas a ciência das percepções, isto é, o campo da Opinião (doxa).

Assim o discurso sobre o homem começa com Protágoras, não sendo mais a natureza que interessa, mas sim o pensamento urbano da (polis), no qual o homem será o centro, em relação à cidade e à política.

Nos diálogos de Platão, por intermédio do personagem Sócrates, tem-se um exemplo do homem medida de Protágoras; eis que Sócrates pergunta, portanto, “Como é o vento em si?” E a resposta é que não sabemos plenamente, o que sabemos é o que sentimos e o que parece para cada um. Ou seja, para alguém o vento parece frio, para outro quente e, para um terceiro morno. Assim ele é de um modo para um e de outro modo para outra pessoa. Mas o vento em si não sabemos o que ele é.

Portanto, àquele ser de Parmênides (a coisa em si) não temos acesso cabal, porque temos acesso somente ao mundo das coisas em si pelas nossas percepções, situadas em nossos cinco sentidos.
No limite, para Protágoras, o conhecimento como se verá em Platão que busca a via da verdade, não é possível. Por isso que na história da filosofia, fala-se que em Protágoras há um pensamento crítico, e não enganador e mercenário como os demais sofistas, mas sim, há nele uma crítica ao conhecimento científico.

Por fim, aquilo que será teorizado como ciência para Platão propondo um modelo científico com origem em Parmênides, que dizia ser a única via para o conhecimento verdadeiro aquilo que (é), ou seja, a via do ser; é bem antes criticado por Protágoras, pois o ser em si não conhecemos de fato, e o que nos resta, é apenas a nossa percepção particular da coisa em si.

[continua… -> Protágoras de Abdera, parte 2]

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Obg. Att. César Rangel

Referências bibliográficas:

CORNELLI, G & LOPES, R., Platão. Imprensa da Universidade de Coimbra, 2018.
FRONTEROTTA, F., BRISSON, L. Platão: leituras. São Paulo, Loyola, 2011.
KERFERD, G. B. O movimento sofista. São Paulo, Loyola, 2002.
TRABATTONI, Franco, Platão. São Paulo: Annablume, 2010.
PLATÃO. Apologia de Sócrates. Críton. Tradução de Manuel de Oliveira Pulquéio. Lisboa: Edições 70, 1997.
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______. Fédon. Tradução de Carlos Alberto Nunes. Belém: EDUFPA, 2011.
______. Górgias. Tradução de Manuel de Oliveira Pulquéio. Lisboa: Edições 70, 2006.
______. Mênon. Tradução de Maura Iglesias. São Paulo: Loyola, 2002.
______. Protágoras. Tradução de Jowett, B. Editado e com comentário de Vlastos, G. New York, NY: Bobbs-Merrill, 1956.
______. Teeteto e Crátilo. Tradução de Carlos Alberto Nunes. Belém: UFPA, 1988

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César Rangel

Graduado em Letras (Unesp) e graduando em Filosofia (UFSCar), pesquisador e poeta. Além de ser um caminhante e perscrutador do V.I.T.R.I.O.L