Requiem para a Phronesis ou a Morte do Filósofo.
A sabedoria-prática da Phronesis como treino para a morte do filósofo.
Proêmio:
Montaigne (1533–1592), num de seus ensaios, Filosofar é aprender a morrer, escreve:
Qualquer que seja a duração de nossa vida, ela é completa. Sua utilidade não reside na quantidade de duração e sim no emprego que lhe dais. Há quem viveu muito e não viveu. Meditai sobre isso enquanto o podeis fazer, pois depende de vós, e não do número de anos, terdes vivido bastante. Meditar sobre a morte é meditar sobre a liberdade; quem aprender a morrer, desaprendeu de servir; nenhum mal atingirá quem na existência compreendeu que a privação da vida não é um mal; saber morrer nos exime de toda sujeição e coação.
- O Dualismo antropológico corpo e alma no Fédon, de Platão.
Para o exame do dualismo platônico, partimos do pressuposto de que a relação corpo e alma no Diálogo Fédon se apresenta em duas perspectivas que melhor mitigam as dificuldades aparentes no seu discernimento: uma no campo da ética-antropológica e outra no campo da onto-epistemologia.
À guisa de resumo dramático no Diálogo do Fédon:
- Fédon e Equécrates conversam sobre os últimos momentos antes da morte de Sócrates;
- Fédon se demonstra honrado em narrar estes últimos diálogos de Sócrates com seus discípulos presentes;
- Relata como Sócrates se encontrava perante a morte: feliz, numa atitude de nobreza e segurança;
- Fédon diz que o objeto das conversas entre Sócrates e os discípulos era o prazer da filosofia;
- Conclui mostrando que os discípulos se sentiram num misto de prazer e dor e não num estado de compaixão e pesar, mesmo vendo seu Mestre prestes a morrer;
À guisa de resumo teórico no Diálogo do Fédon:
- O Diálogo Fédon é dividido em três partes: 1ª) “O medo da Morte”; 2ª) O “Intermédio” e 3ª) parte final “Exposição de Sócrates sobre a técnica do logos”.
- Na seção inicial o “conhecimento” é caracterizado como (posse das formas pela alma), só alcançável em condições especiais.
- Na seção final do diálogo Sócrates mostra como o “trabalho com os logoi e com as hipóteses” parecem constituir uma forma mais dinâmica de filosofia.
- Por fim, Sócrates apresenta a “técnica do discurso” como uma possibilidade de conhecimento para o homem em sua condição mista de (corpo e alma).
Qual acusação e sentença?
Sócrates foi condenado à morte por envenenamento de Cicuta, por ir contra as regras atenienses e corromper os jovens com seus ideais e não acreditar nos Deuses Órficos de sua região. Mesmo podendo fugir ou renunciar às suas palavras, Sócrates aceita sua pena para ensinar uma última lição a seus alunos:
“Não se deve temer a morte e sim abraçá-la”.
A relação aqui traçada entre a dualidade grega do (corpo) e da (alma) se transmuta neste exame para seus pares análogos na relação [morte] do corpo e [filosofia] da alma, posto que Sócrates, não faz somente uma defesa de si (enquanto ente corporificado) em argumentos verdadeiros para seus discípulos ou juízes, faz antes, uma defesa pessoal (enquanto ente transcendente) de suas ações e convicções (em vida) e, em conformidade com a ética filosófica e a Phronesis, na busca pela verdadeira esfera do conhecimento puro, no pós-morte.
Phronesis: designa a sabedoria como virtude do pensamento prático ou simplesmente sabedoria prática, entre o logos (pensamento ou razão) e o ethos (caráter). É a ética do filósofo, com a qual deve seguir em sua prática.
Segundo Sócrates “o verdadeiro alvo da filosofia (…) é um treino de morrer e de estar morto”.
E a estas palavras um discípulo de Sócrates pergunta:
“mas como o filósofo pode se alegrar perante sua própria morte?”
Iremos nos aproximar desta resposta a seguir, não obstante, no Fédon, a morte é definida como a “separação do corpo e da alma”, portanto, a morte é encarada como o estado de (separação) em que o Corpo se encontra: em-si e por-si — separado da alma — e a Alma, por sua vez, encontra-se — separada do corpo —igualmente: em-si e por-si.
Essa expressão [em-si e por-si] empregada ao corpo e a alma, segundo ROBINSON (2009, p. 59), manifesta que a morte seria o momento em que estas duas entidades se encontram num estado de separação, sem estar misturadas uma à outra.
A atividade filosófica, comparada a esse “treino para a morte”, seria uma constante tentativa, por parte do filósofo, em manter o corpo e a alma separados um do outro.
- Primeiro, por que razão há essa necessidade de que aquele que se dá ao prazer da filosofia querer se encontrar no estado de quem já tivesse morrido e separado do corpo ou de quem treina para morrer e, consequentemente, se dar bem no submundo do Hades?
- Segundo, por que é necessário manter a alma e o corpo separados um do outro?
Sócrates ao tentar se explicar, parte do pressuposto de que para o filósofo não é compatível se entregar às satisfações corruptivas dos (prazeres): carnais, sensuais, etc. Que o verdadeiro filósofo trata de renegar tais prazeres que são relativos ao corpo [64e — no Fédon], assim assevera Sócrates que “é à alma que o filósofo mais tende, e não ao corpo”[64e].
Em seguida, apesar da iminência de sua condenação à morte, em seu último dia de vida o notável mestre não se furtou a realizar uma investigação que justifica a curiosa, incomum e inaudita “boa aceitação de sua morte”, a saber: a investigação sobre a imortalidade da alma, depois de separada do corpo.
Esta é a questão chave do Diálogo Fédon, no entanto, veremos que não só esta questão é imprescindível, como também a ética ou a (phronesis) é essencial para a “boa morte” do filósofo.
2. A Defesa da Morte de Sócrates para a “boa aceitação da morte”.
A descrição dramática e filosófica em detalhes desta última cena de Sócrates, aparentemente casual, narra de modo dramático esta imersão filosófica, que precisamente se apresenta sob a forma do desligamento da vida na iminência da morte. Vê-se o comportamento “feliz” com que Sócrates se despede da vida, dando espaço aos poucos por suas palavras intensas em defesa da “phronesis” e a sabedoria-prática em vida, ao tema do afastamento entre corpo e alma, tratado filosoficamente neste Diálogo.
Écfrase da cela de Sócrates, horas antes de sua morte:
Estiveram treze discípulos ao todo na mesma cela que Sócrates, nove se amontoavam à sua direita e quatro se consolavam à sua esquerda. Os dois mais brandos se consolavam de cabeça baixa em choro lastimoso, os outros dois à esquerda de Sócrates se alentavam apoiados cabeças e ombros, em negação à atitude de Sócrates de tomar o veneno mesmo havendo “alternativas” para sua morte — bastaria(?) renunciar às suas crenças, intelecções, princípios e tudo aquilo que fundamenta e se dedica o filósofo — , seus discípulos inconsoláveis, todos, os mais coléricos se jogavam de cabeça baixa contra a escuridão dos seus pensamentos, em tentativa desesperada por compreender os princípios socráticos da “boa morte” que inevitavelmente o levaria para o Hades, sem volta, deixando para trás discípulos fieis e toda uma sociedade ateniense necessitada de suas interrogações. Outros viravam a cara, fechavam os olhos, colocavam as mãos sobe os olhos e a testa, negando tacitamente em recusa a morte de seu mestre. Em suma, todos os discípulos incontornáveis, de pés firmes no chão da vida, enquanto Sócrates, liberto de suas vaidades, de seus desejos, de sua carne, ossos, corpo tudo. Sabido que uma boa vida teve, que um filósofo verdadeiro fora em vida, caminhando o meio termo entre as coisas corruptivas, disse que a atividade filosófica é um “treino para a morte”, para a “boa morte” que é a busca pela (phroneses = a ética do filósofo) ou a sabedoria-prática, em vida, desejando separar-se de seu corpo — matéria apenas orgânica e perecível — , enquanto que a alma — imortal — deseja ascender e encontrar-se junto das formas puras do conhecimento, portanto, o corpo é o entrave, a prisão, a fonte de corrupção e o cárcere para a alma ascender e expandir. A cela era cinza, com correntes e grilhões pendurados nas paredes, uma cama minúscula, pedras e pedras empilhadas nas paredes grossas, no átimo da vida um único cálice a afastava da morte— contendo a Cicuta, veneno grego para sentenças como esta, sem chances ou fuga, porém uma morte limpa, a morte certeira, o corpo perecido, a alma liberta do corpo, finalmente separada deste e alçado o verdadeiro conhecimento noético (das formas e ideias puras), além de toda opinião (doxa), de toda sombra e imagens perceptivas (eikones), da crença (pistis), de toda ciência (dianóia) e por fim além até da (epistemis), o encontro do bem-supremo e do conhecimento puro (noético) — Sócrates agora está no Hades.
Contudo, não somente vemos Sócrates feliz com sua morte, como também nesta última conversa com seus discípulos, o filósofo estaria dando o ensinamento que considera o mais importante dentre todos:
a importância de cuidar da alma e o modo legítimo de fazê-lo pela phronesis e, assim, salvando-os para que desfrutem da verdadeira vida, no pós-morte, ou como queira, no pós-corpo — a alma livre e pura!
O pesar dos ouvintes se contrapõe à boa aceitação de Sócrates em cumprir a sua condenação. A carga emocional que este diálogo apresenta aparece no mal-estar daqueles que foram se despedir do mestre. A cena é fúnebre, tanto pelo choro, quanto pela tristeza abatida nos discípulos.
No entanto, Sócrates tem um tom de serenidade, dando ao Diálogo um trato filosófico de sua defesa de morrer, sabendo que sua separação do corpo está em plena concordância com sua busca pela felicidade (eudaimonia).
Platão, por meio do personagem Sócrates faz um ataque aos falsos filósofos na primeira parte, introduz a argumentação da imortalidade da alma no decorrer do texto e, por fim, pontua a verdadeira prática filosófica, a técnica do (logos).
Fédon ao narrar a última cena de Sócrates fala para Equécrates:
“…efetivamente, não era compaixão o que eu sentia, por assistir à morte de um companheiro e mestre querido. É que esse homem me parecia feliz Equécrates, a avaliar pelas suas palavras e atitudes, tal a segurança e a nobreza com que enfrentou o fim! Pelo que não pude deixar de me convencer que um homem como esse não desce ao Hades senão por uma determinação divina e que, quando ali chega, é para gozar de uma felicidade tal como talvez nenhum outro tenha encontrado. (…) Em resumo, era uma indefinível sensação que me dominava, um misto singular de prazer e simultaneamente dor, à ideia de muito em breve esse homem deixaria de existir.” [58e — 59a, Diálogo Fédon]
3. A transcendência da alma e o ensinamento de Sócrates, por Platão.
Para Platão, portanto, a alma está ligada ao suprassensível e o corpo ao sensível. Por isso, para o referido filósofo, o corpo não é visto como algo que faça parte da essência humana, pelo contrário, configura-se como o “túmulo” ou “cárcere” da alma, em outras palavras, o corpo funciona como local de expiação da alma humana até que esta transcenda sem mais reencarnar.
Sendo assim, quando a pessoa morre “no corpo” é sinal de vida ou alegria, pois neste momento a alma se liberta de seu “cárcere” e pode assim retornar para o convívio dos deuses ou das formas puras, isto é, sob uma condição, caso tenha em vida uma prática correta de ações e julgamentos moral e ética, a saber: uma (phronesis) ou sabedoria ética prática como purificação e uma técnica do discurso bem alinhado, caso não seja a ocasião a alma retornará a outro corpo encarnando novamente em um novo ciclo de expiação.
Neste sentido foi com base no conceito de morte que o filósofo construiu toda a sua derradeira argumentação filosófica contra a misologia e os ditos filósofos que buscavam a posse da verdade, isto é, da morte fazendo a oposição corpo/alma para alicerçar todos os exames que durante todo o diálogo Platão tentou resolver, isto é, debruçando-se sobre a natureza da oposição entre estas duas entidades.
No entanto, é somente ao deixarmos o percurso dramático do texto é que podemos alcançar a verdadeira mensagem deixada por Platão, a saber, que a dualidade corpo/alma carrega uma dificuldade que só é superada ao se observar aquele caráter ético-antropológico e onto-epistemológico, no que tange o uso da morte e da separação do corpo e da alma como a busca pelo saber pleno, somente através da sabedoria prática e da técnica do logos. O homem deve, portanto, afastar-se dos prazeres carnais como condição para sua elevação epistemológica, senão, estará a alma eternamente misturada com o corpo e praza num eterno retorno de encarnações no mundo sensível.
A verdadeira retenção, propriedade e desfrute da verdade suprema só se dará com a concentração técnica do logos e a sabedoria prática sobre a alma (64e), pois o corpo ao se deixar levar pelos prazeres de todos os tipos somente aliena e distrai a alma de sua busca pela sabedoria.
Se quiser ler um pouco mais sobre Platão e suas ideias, encontre-me no link do texto: “Platão e a Analogia da Linha dividida”.
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Obg. Att. César Rangel
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